Introdução
Por meio do Instituto Afrolatinas, Jaqueline está desafiando o racismo e a misoginia embutidos no setor de produção cultural, permitindo que as mulheres negras assumam posições de poder e eliminem as premissas de desigualdade no mercado cultural.
A nova ideia
Jaqueline trabalha contra o racismo e o sexismo combinando soluções habituais de conscientização, análise de poder, e afirmação do patrimônio cultural com soluções sistêmicas, como aprendizagem aberta, estágios profissionais, a criação de padrões de trabalho justos e reforma de políticas públicas de forma inovadora através de um festival cultural bem-sucedido e programas de formação profissional no setor. Após vinte anos de trabalho acumulado, a originalidade e o impacto do trabalho de Jaqueline são vistos com mais clareza quando compreendidos como um conjunto coerente e completo de projetos necessários para manter um movimento vivo durante todo o ano em prol da dignidade e da inclusão de pessoas negras, principalmente as mulheres, no setor cultural.
A partir da organização que ela fundou, o Instituto Afrolatinas, Jaqueline tece três fios em tudo o que faz: (1) aumenta a conscientização sobre as raízes do racismo e do sexismo na sociedade, especificamente, no setor cultural; (2) aumenta a confiança e a capacidade das mulheres negras como artistas, musicistas, dançarinas, gestoras e trabalhadoras da cultura em geral para desafiar a desigualdade estrutural; e (3) convida o governo e as empresas a enfrentar o racismo e o sexismo por meio de novas políticas, práticas e financiamentos.
Essas três linhas de trabalho são claramente visíveis em seu principal projeto, o Festival Latinidades, realizado anualmente. O Festival começou há 16 anos em Brasília, capital do país, para abordar o fato de que o calendário de festivais culturais ativos do Brasil negligencia a cultura negra em geral e as artistas negras em particular. Para transformar um festival anual em um "movimento", Jaqueline percebeu que era necessária uma base física permanente e com visibilidade. Para isso, ela criou a Casa Afrolatinas no Varjão, um bairro periférico de 6.000 pessoas em Brasília, onde 80% da população é negra e pobre. A Casa Afrolatinas de Brasília tornou-se espaço fértil e de acolhimento para articulações diversas como o cinquentenário da cultura hip hop e do seu reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro. Além disso, a Casa Afrolatina também é a base de produção das atividades realizadas pelo Instituto, que incluem, entre outras, o Serviço de Preta, a Universidade Afrolatinas, e a Afroteca.
O problema
Historicamente, no Brasil, as mulheres negras são as menos beneficiadas em todas as áreas de políticas públicas, desde saúde, educação, renda, emprego e moradia até cultura e lazer. Esses são resquícios claros da escravidão, do racismo e da misoginia, questões profundamente enraizadas na história de formação do Brasil, um problema interseccional por excelência.
A economia criativa, setor econômico das atividades culturais do país, foi responsável por 4,0% do total de empregos formais na região do Distrito Federal. Ou seja, cerca de 40.715 contratos formais foram diretamente relacionados a atividades culturais. Dessa forma, esse setor empregou mais de 22 mil trabalhadores em 2016, um ano marcado pela crise econômica no país.
No Brasil, há dois principais subsídios governamentais que apoiam a cultura: a Lei Rouanet (1991) e a Lei Paulo Gustavo (2022). A Lei Paulo Gustavo é uma resposta aos efeitos da pandemia no setor cultural, sendo o maior investimento do governo em cultura no país, com um total de R$ 3,8 bilhões. Ele foi dividido entre municípios e estados mediante a apresentação de um plano de distribuição dentro da região. Por ser uma lei nova, não há muitas evidências sobre as consequências de distribuição desse fundo e sua capilaridade. A Lei Rouanet, por outro lado, tem sido uma das principais fontes de investimento em cultura do país desde sua criação em 1991 e tem sido alvo de muitas críticas em termos de distribuição e transparência. Trata-se de uma lei de incentivo fiscal por meio da qual projetos aprovados pelo governo podem ser financiados por diferentes empresas ou doadores privados em troca de dedução fiscal.
Geciane Porto, professora de economia da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a autonomia do investidor na escolha do projeto que deseja apoiar, a falta de transparência no processo de aprovação do governo e a ausência de know-how dos artistas emergentes para redigir propostas competitivas e de qualidade favorecem artistas e proponentes já conhecidos. Não surpreende, portanto, que o perfil de quem recebe os subsídios da Rouanet reflita o histórico de discriminação racial e de gênero do país. As práticas culturais tradicionais das populações negras e indígenas foram ilegais por muito tempo. A capoeira, por exemplo, era ilegal até a década de 1920, e seus praticantes podiam ser presos ou até mesmo receber castigos físicos. Mecanismos de exclusão estatais são historicamente determinados e, se essas questões não forem resolvidas, novos subsídios, como o da lei Paulo Gustavo, talvez nunca cheguem às comunidades vulnerabilizadas como se pretende.
A falta de entrada no mercado e de oportunidades de aprendizado é um fator fundamental para que as mulheres e, principalmente, as mulheres negras se mantenham à margem do trabalho no setor cultural, especialmente em áreas como direção, curadoria e produção técnica, além da posição de artistas. De acordo com a pesquisa realizada por Thabata Arruda (pesquisadora musical e criadora de conteúdo) em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC), ao analisar a presença de gênero em alguns dos principais festivais brasileiros que aconteceram entre 2016-2018, apenas 19% de artistas eram mulheres. A pesquisa incluiu apenas artistas e não trabalhadores, além de não considerar um recorte racial. Isso aponta para uma outra questão, a falta de dados para delinear a discriminação contra pessoas negras no setor cultural.
Em termos de raça, 57,6% da população de Brasília é negra; em média, os negros têm uma renda 40% menor do que os não negros; e 64% da população negra vive em bairros onde a média total da renda doméstica é inferior a R$ 3.101,00 (Codeplan, 2018). As desigualdades raciais também são profundamente expressas quando filtradas por gênero. Dois terços das mulheres (66,6%) na população de renda mais alta são brancas, e essa proporção diminui significativamente entre os grupos de renda mais baixa. Na população de baixa renda, 68,1% das mulheres são negras. Em termos de ocupação, 15,8% das mulheres negras brasileiras trabalham como empregadas domésticas, enquanto apenas 7,5% das mulheres brancas trabalham nessa área.
A estratégia
Para Jaqueline, a cultura é tanto um meio quanto um fim para combater a discriminação racial e de gênero. Por isso, ela trabalha prioritariamente, através do Instituto Afrolatinas, três elementos necessários para combater o racismo e o sexismo no setor cultural: (1) o fortalecimento das identidades negras; (2) a incidência política; e (3) a formação de pessoas negras. A estratégia do Instituto Afrolatinas combina essas três estratégias com grande eficácia.
O Instituto Afrolatinas busca demonstrar como o setor cultural é tão racista e sexista quanto outras partes da sociedade, e talvez até mais. A origem de todo o trabalho realizado pelo Instituto, o Festival Latinidades, é um exemplo brilhante de como um festival cultural antirracista é organizado. Nada aumenta mais a conscientização sobre o racismo e o sexismo do que experimentar seu antídoto. Realizado desde 2008, o festival é um espaço aberto e gratuito onde o público tem acesso a apresentações, discussões, arte, literatura, palestras e produtos direcionados e produzidos por pessoas negras. Ele também está criando e fortalecendo símbolos negros ao mesmo tempo em que se tornam uma ferramenta de defesa. Em 2014, sete anos após a criação do festival, foi instituído por lei o dia 25 de julho como o Dia da Mulher Negra, ecoando os princípios do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O Festival Latinidades teve papel determinante nessa conquista, ao lado dos movimentos de mulheres negras do Brasil. A data existe desde 1992 internacionalmente e, uma vez sancionada a lei nacional, ela homenageia Tereza de Benguela, mulher escravizada que fugiu para um quilombo onde liderou um importante centro de resistência, dando refúgio a outros escravizados fugitivos e indígenas durante o período colonial. O festival é realizado durante esse período do ano para celebrar esse dia e relembrar os importantes heróis e heroínas negras da história brasileira. O festival de 2023 foi realizado em quatro grandes cidades brasileiras, além de palestras sobre o festival realizadas em outros países.
O festival também é importante para promover a dignidade dos trabalhadores no setor cultural, pois respeita integralmente as leis trabalhistas e oferece treinamento aos trabalhadores. É uma referência tão grande no campo emergente da diversidade, equidade e inclusão no setor cultural, que hoje circula por todo o país falando sobre o tema e prestando consultorias para empresas. Jaqueline está agora explorando como influenciar todos os festivais culturais do Brasil por meio de algum tipo de iniciativa sobre normas e padrões para mudar a maneira como as decisões de programação e contratação são tomadas.
As formações e os treinamentos são uma estratégia central do Instituto. Como uma estratégia de baixo para cima, o Afrolatinas projetou e executa programas de capacitação e formação para a elaboração de projetos culturais e para a entrada de suas estudantes no mercado de trabalho cultural.
A Universidade Afrolatinas é uma das outras atividades realizadas dentro da Casa Afrolatina. É uma instituição aberta, híbrida e afrocentrada com a missão de contribuir para a democratização do conhecimento técnico, instrumental, político e filosófico sobre as histórias, as artes e a cultura negra. Seu objetivo é fortalecer paradigmas alternativos de ensino, aprendizado e integração entre arte, cultura e educação. Elas estão usando novas ferramentas, processos e práticas integrativas para treinar pessoas negras para a produção cultural, principalmente sobre como digitalizar músicas, entender os direitos autorais, desenvolver carreiras artísticas, pensar sobre a participação social e interseccional das pessoas negras no setor cultural, e também sobre a memória e o patrimônio cultural negro na América Latina. Lá, também têm a Afroteca, uma biblioteca aberta, móvel e de livre acesso, com mais de 200 títulos de livros afrocêntricos.
Outro programa executado em um formato híbrido (on-line e/ou presencial) é o "Serviço de Preta", batizado como uma subversão da expressão "serviço de preto" comumente usada para se referir a serviços mal-feitos. Neste programa, elas capacitam mulheres negras como empreendedoras para atuar na economia criativa, por meio de cursos, oficinas, mentorias e possíveis bolsas individuais, demonstrando que os negros podem oferecer serviços de excelência. Segundo Jaqueline, na maioria das vezes, a mão de obra negra das produções culturais está concentrada no trabalho braçal. Essa é uma forma de mudar esse cenário, pois foca em uma estratégia micropolítica para levar os negros a posições de poder e promover mais equidade. Por exemplo, uma das estudantes que fez seu primeiro treinamento aos 17 anos, tornou-se uma das diretoras do Instituto, trabalhando tanto com o festival quanto com os programas educacionais, e mais tarde assumiu o cargo de chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do Ministério das Comunicações do Brasil.
O festival também incluiu atividades para e com crianças negras, empoderando-as sobre sua ancestralidade e dando-lhes o palco para compartilhar suas próprias experiências vividas como crianças negras. Mais tarde, a atividade evoluiu para o chamado Latinidades Kids, um esforço para oferecer uma versão do festival e atividades para alunos do ensino fundamental e médio em escolas públicas de Brasília. Infelizmente, o programa foi descontinuado devido à falta de financiamento.
Jaqueline se sente confortável trabalhando tanto com sua comunidade como com atores no governo e empresas. Alguns de seus maiores sucessos vieram do lobby junto ao setor público para implementar ações afirmativas nos subsídios culturais do governo. Seu sucesso se baseia, em parte, na sua compreensão de como as ideias entram e saem de moda no governo e de que os ganhos sustentáveis a longo prazo vêm de trabalhos profundos para mexer na burocracia. Ela criou pessoalmente novas oportunidades para pessoas das periferias, mulheres, indígenas e grupos culturais vulneráveis enquanto trabalhou para o governo de 2014 a 2018. Durante os anos de Bolsonaro, esses exemplos foram citados pela sociedade civil para resistir ao retrocesso do governo no meio cultural. Jaqueline ensina que a política e a cultura são inseparáveis e considera que seu papel é lutar por uma distribuição mais igualitária de financiamento. Ela defende com veemência as ações afirmativas, especificamente como uma forma de reparação histórica à ausência de acesso a recursos e à criminalização da cultura negra. Devido ao seu compromisso de fornecer acesso gratuito a todas as atividades do Afrolatinas, incluindo o festival, o Instituto depende de subsídios do governo, doações e financiamentos de fundações. Nos últimos três anos (2020-2022), cerca de dois terços de seu financiamento provêm de subsídios do governo e um terço de fundações internacionais. Eles adotam uma abordagem ativa de parceria para sustentar os programas educacionais, trabalhando em parceria com diversas organizações sociais dentro e fora do Brasil.
O perfil de impacto do Instituto é impressionante e está crescendo. Em 2023, o festival teve 10.000 pessoas participando em atividades educacionais e artísticas e gerou 700 empregos para mulheres negras e 10 pessoas com deficiência. Também gerou receita para 40 mulheres negras empreendedoras por meio da Feira Afro. A Universidade Afrolatinas remunerou 90 profissionais, além de terem publicado seis livros. A última publicação, que condensou 15 anos de história do festival, e consequentemente, 15 anos de memória negra, foi publicado em três idiomas, português, espanhol e inglês, devido ao recente engajamento de Jaqueline com as universidades negras dos Estados Unidos e outras iniciativas na América do Sul. Todas alinhadas com sua visão da Diáspora Afrolatina.
A meta de Jaqueline para os próximos 10 anos é aumentar sistematicamente esses números e expandir seu impacto social e econômico na economia criativa. No momento, ela está trabalhando em parcerias com outros festivais afro-diaspóricos na América Latina e gerando mais dados sobre o setor de produção cultural do Brasil para entender a participação dos negros na economia criativa (especialmente das mulheres negras) e também retratar melhor as desigualdades no setor. Ela espera criar modelos mais sustentáveis para o festival e para os cursos. Jaqueline também tem como objetivo retomar o Latinidades Kids nas escolas públicas e quer transformar os cursos ministrados na universidade em livros para aumentar o acervo sobre as questões das mulheres afrolatinas.
A pessoa
O perfil empreendedor desde a infância de Jaqueline reflete as batalhas que são preciso travar e vencer para expressar uma identidade afrolatina em uma sociedade que a discrimina sistematicamente. Filha de uma empregada doméstica e de um pai ausente, Jaqueline foi criada nas periferias de Brasília, em Planaltina, a última região administrativa da zona norte do Distrito Federal. A violência doméstica, a violência nas ruas e a morte faziam parte de seu cotidiano. Havia um senso de comunidade na periferia, embora não houvesse uma consciência compartilhada sobre as suas condições de classe ou de raça.
Sua conscientização política começou por volta dos 13 anos, quando ela se juntou ao movimento anarco-punk. Embora o movimento anarco-punk fosse muito branco e centrado em referências Europeias, ele lhe deu importantes noções macropolíticas sobre sua própria realidade. Mais tarde, ela começou a tocar baixo em uma banda e a produzir fanzines sobre seus descontentamentos adolescentes. Isso levou-a às primeiras investidas na profissão que iria exercer na maior parte da sua vida como produtora cultural. Aos 17 anos, ela conheceu o movimento hip-hop. Diferente do anarco-punk, o hip-hop se concentrava na micropolítica da comunidade negra, explicando algumas das coisas que ela estava vivendo e sentindo naquele momento. Também trouxe para ela referências negras e a cultura oral, principalmente por meio do RAP.
No início de sua vida adulta, Jaqueline decidiu estudar jornalismo. Por meio do FIES, um programa do governo que ajuda estudantes pobres a financiar sua jornada educacional em universidades particulares, ela conseguiu uma bolsa para estudar no IESB, uma universidade particular de Brasília. Em seus estágios, começou a trabalhar com produções culturais, imergindo-se, pela primeira vez, na vida de artistas profissionais. No entanto, ela também sofreu humilhação e exploração por sua identidade de raça e gênero, o que a levou-a a processar a empresa logo após sua saída. Além disso, ela percebeu que não havia muitos artistas negros na agência em que trabalhava, e os que havia recebiam um tratamento diferente dos artistas brancos. Depois de terminar a faculdade e deixar o estágio, ela fundou a Griô, a primeira agência de Brasília feita por e para artistas negros, com foco em mulheres negras.
A Griô foi o início da tentativa de Jaqueline de criar um projeto cultural descolonizado, colocando muitos artistas negros na mídia e tornando-os conhecidos no setor de produção cultural. Com a necessidade de ampliar seu impacto e disseminar ainda mais a cultura negra, em 2008, iniciou o Festival Latinidades. Com base no reconhecimento e na influência de Jaqueline no setor cultural, ela foi Subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural entre janeiro de 2015 e dezembro de 2018. Depois de deixar o governo, buscando dar o próximo passo para além do impacto do Festival, ela passou a se dedicar, exclusivamente, ao Instituto Afrolatinas e combater as desigualdades de raça e gênero no setor cultural brasileiro e na América Latina.