Elisabeth Cardoso
Ashoka Fellow desde 2022   |   Brazil

Elisabeth Cardoso

CTA- Zona da Mata
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Beth está abrindo caminho para que mulheres rurais tenham acesso a oportunidades de assistência técnica, financiamento, crédito e outros programas públicos por meio de um instrumento político…
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Esta descrição do trabalho de Elisabeth Cardoso foi preparada quando Elisabeth Cardoso foi eleito para a Ashoka Fellowship em 2022.

Introdução

Beth está abrindo caminho para que mulheres rurais tenham acesso a oportunidades de assistência técnica, financiamento, crédito e outros programas públicos por meio de um instrumento político pedagógico de coleta de dados. A partir desta iniciativa é possível reconhecer a contribuição das mulheres na economia familiar e rural, permitindo-lhes mais autonomia e acesso a direitos.

A nova ideia

Apesar do forte movimento da agricultura familiar e da presença feminina nele, a disparidade de gênero está bloqueando o desenvolvimento da produção de alimentos, uma vez que as mulheres não são vistas como parte do sistema econômico. Os papéis femininos são muitas vezes considerados inferiores e suas vozes silenciadas, pois seu trabalho é considerado menos importante por aparentemente não gerar ativos financeiros relevantes. Essa suposição, por sua vez, priva-as de oportunidades de formação, acesso ao crédito e aposentadoria pública que limitam o bem-estar e desenvolvimento destas comunidades.  

Reconhecendo esse ciclo vicioso, Beth desenvolveu uma metodologia simples e adaptável para sistematizar o valor econômico da produção das mulheres na agricultura familiar, tradicional, camponesa e torná-lo visível. A metodologia materializa a participação social e econômica das mulheres do meio rural, onde elas registram tudo o que vendem, consomem, trocam e doam a partir da sua produção. Essas informações, nunca antes registradas, desencadeiam mudanças na qualidade de vida das mulheres. Empoderadas e incluídas como parte do sistema econômico, essas mulheres podem reivindicar seus direitos nas esferas familiar, comunitária e pública. Os dados gerados também têm servido, em alguns casos, como evidência para que as mulheres tenham acesso ao principal programa federal de acesso à crédito, o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e acesso à aposentadoria na categoria especial de agricultora familiar. Na pesquisa, que acompanhou a implementação da metodologia em redes de agroecologia da Amazônia, Nordeste, Sul e Sudeste, se comprovou que os espaços de cultivo das mulheres, em especial os quintais: 1) existem e são produtivos; 2) preservam a agrobiodiversidade; e 3) são relevantes na manutenção da renda da agricultura familiar, camponesa e tradicional no Brasil.   

Beth usou os dados da produção das mulheres sistematizados para influenciar mudanças sistêmicas e de longo prazo, como a criação de políticas públicas rurais específicas para as mulheres. O instrumento político-pedagógico desenvolvido foi inserido, por exemplo, na assistência técnica do Governo de Estado da Bahia e da Prefeitura Municipal de Afogados da Ingazeira, no estado de Pernambuco. Só na Bahia, a política estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural para Mulheres - executada pela SDR (Secretaria de Desenvolvimento Rural) por meio da Bahiater (Superintendência Baiana de Assistência Técnica e Extensão Rural) – atende a 5,4 mil mulheres, em comunidades rurais de 60 municípios de 11 Territórios de Identidade da Bahia. Além de governos locais, Beth tem disseminado a metodologia em parcerias com instituições multilaterais, como o Fundo Internacional da ONU para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA).

O problema

No Brasil, as mulheres representam 50% da população rural (cerca de 15 milhões de pessoas) e lideram 20% das unidades de produção rural (Instituto de Geografia e Estatística - IBGE, 2017). Ainda assim, apenas 12% das unidades agrícolas lideradas por mulheres recebem algum tipo de assistência técnica (Censo Agropecuário, 2017). As famílias chefiadas por mulheres também sofreram níveis mais elevados de insegurança alimentar do que as chefiadas por homens, com 11% das famílias chefiadas por mulheres relatando insegurança alimentar em comparação com 7,7% daquelas chefiadas por homens (Rede Pennsan, 2020). Ao fazerem parte de uma unidade familiar chefiada por homens, as mulheres são consideradas menos importantes por aparentemente não gerarem renda. Seus esforços, incluindo o cultivo de frutas, de hortaliças nas hortas familiares, a criação animal, as confecções de doces, de artesanatos e utensílios domésticos, geralmente não são considerados, nem valorizados.  

Somado a isso, algumas dessas mulheres não têm controle sobre a renda que ganham e são privadas de espaços de formação e oportunidades de financiamento, crédito e assistência técnica. Quando trabalham como agricultoras, as mulheres também são marcadas pela inferioridade, estigmatização e silenciamento. O desenvolvimento do pensamento econômico adotou métodos, temas e uma pedagogia que atribui importância apenas às atividades mediadas pelo mercado (Julie Nelson, 1995), invisibilizando a produção de alimentos, a manutenção do tecido social e a renda obtida pelas mulheres através das relações de auto-consumo, troca e doação. É preciso se buscar referências em outras economias não ortodoxas, como a Economia Feminista, para colocar a sustentabilidade da vida no centro das análises econômicas (Amaia Orozco, 2019), e dar visibilidade ao trabalho e à contribuição das mulheres na renda da agricultura familiar, tradicional e camponesa.  

Os dados gerados pelo Governo Federal não ajudam a mudar o estigma, pois a renda familiar não se divide na contribuição de cada integrante. Diversos levantamentos de dados e censos demográficos são incapazes de captar a participação e contribuição das mulheres para as famílias, para a economia rural e na produção de alimentos, impedindo-as de acessar benefícios e impedindo os formuladores de políticas de criarem apoios específicos para elas. A produção real e a contribuição econômica das mulheres para a renda familiar são invisíveis, perpetuando as desigualdades e bloqueando o potencial da participação das mulheres nas suas organizações e comunidades.  

Diante desse quadro, mudanças nas esferas individual, familiar e coletiva são extremamente necessárias. Para que isso aconteça, um dos pontos centrais é permitir a identificação e visibilidade da real contribuição das mulheres na economia. Ao lançar luz sobre o trabalho desenvolvido pelas mulheres e reconhecer seu papel central na agricultura familiar, será aberto o caminho para o acesso a oportunidades de assistência técnica específica, financiamento, comercialização, acesso à terra, à água, ao território, entre outras políticas públicas e garantias de direitos.

A estratégia

Beth sempre lidou com as disparidades de gênero ao trabalhar com agricultura familiar e agroecologia. Ao coordenar estratégias de capacitação, defesa de direitos e auto-organização de mulheres em redes agroecológicas com o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA/ZM, organização referência na área), Beth percebeu que para fomentar a produção e os direitos das mulheres seria necessário comprovar sua contribuição econômica.  

Beth identificou, ao longo de sua trajetória como agrônoma e feminista, que a produção dos quintais das mulheres nunca havia sido captada com precisão por pesquisas, diagnósticos e levantamentos censitários e que essa invisibilidade contribuía para a perpetuação das desigualdades. Em resposta, ela coordenou a criação coletiva de um instrumento político-pedagógico para coletar e medir a contribuição econômica das mulheres, a Caderneta Agroecológica. Desde a implementação inicial, a Caderneta é acompanhada por uma formação mais ampla para desenvolver as capacidades, a autoestima e o empoderamento das mulheres. Beth queria garantir que essas mulheres pudessem participar ativamente do processo de incidência para terem acesso a suporte e benefícios adequados. O instrumento foi elaborado para ser acessível a mulheres de todos os níveis educacionais; elas registram informações sobre sua produção diária (o que é vendido, o que é doado, o que é trocado e o que é consumido na família) e as organizam mensalmente. A sua eficácia no monitoramento, garantida pela sua simplicidade e processo de formação, expande a definição da “contribuição”, valorando economicamente relações sociais de reciprocidade, colaborativas, de cuidados, subsistência e sustentabilidade da vida.  

Ciente da diversidade social e cultural do Brasil, Beth utilizou a metodologia por meio de diversas redes agroecológicas nacionais e regionais, articuladas pelo Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA). Com apoio de diversas organizações parceiras, ela reuniu uma rede de mulheres agricultoras, camponesas, quilombolas, indígenas, extrativistas, pesquisadoras e técnicas de ONGs de diferentes regiões e biomas do Brasil, para aprimorar e adaptar a metodologia a outras regiões. Compilando todo o conhecimento gerado por essa implementação, a metodologia atual é composta por 1) um questionário socioeconômico, a partir do qual é feito o levantamento de informações socioeconômicas para construir o perfil das mulheres envolvidas; 2) um mapa da sociobiodiversidade da unidade familiar/espaço de produção, feito para identificar a biodiversidade da produção das mulheres nos quintais, lavouras, criação animal, valorizando os agroecossistemas delas; e 3) capacitação e animação das mulheres para uso do instrumento de coleta de dados, Caderneta Agroecológica, com processos de reflexão crítica da realidade, do trabalho e da produção das mulheres.  

Beth realizou essa implementação nacional, por meio de parcerias com movimentos e organizações da sociedade civil, também como uma oportunidade para monitorar e preencher lacunas de dados sobre a contribuição econômica e ambiental das mulheres. Embora o último censo agropecuário brasileiro, de 2017, tenha produzido informações separadas sobre unidades lideradas por homens e mulheres, ele não forneceu informações detalhadas sobre a contribuição econômica das mulheres (especialmente quando não é uma unidade liderada por mulheres). Em parceria com a Universidade Federal de Viçosa, coordenou uma pesquisa de 24 meses em 16 estados de 4 diferentes regiões geográficas do Brasil, que registrou um valor econômico de R$1.688.091,00 (de 2017 a 2018) provenientes dos quintais e outros espaços de produção das mulheres no período de um ano, sendo que a maioria dessa produção não teria sido contabilizada em lugar algum se não fosse anotada na Caderneta. Comprovaram a grande contribuição dos quintais e espaços de produção das mulheres para a preservação da biodiversidade, uma vez que as mulheres escolhem as espécies que serão cultivadas de hortaliças, frutas, cultivos anuais, criação animal e plantas medicinais com base não apenas em uma análise econômica, mas também em valores culturais e afetivos. Nessa pesquisa, uma variedade de 245 espécies foi registrada nos quintais e cultivos das mulheres, demonstrando que esse é um dos grandes patrimônios do sistema agroecológico.  

Como resultado da metodologia, as mulheres se sentem mais empoderadas e reconhecem seu próprio valor; elas estão se tornando mais confiantes e tomando decisões em relação à produção e ao uso de suas terras. As mulheres descobriram que eram, em muitos casos, as principais provedoras de alimentos de sua família; outras conseguiram identificar que ganham mais com doces de frutas, por exemplo, do que com a colheita do café (prática histórica e cultural da agricultura familiar em Minas Gerais). O valor médio por família, gerado pela produção das mulheres, foi de 74% do salário mínimo no ano de referência das anotações, valor que antes não era contabilizado, nem reconhecido pela família. Isso também se refletiu em relações mais saudáveis ​​e equilibradas dentro de suas famílias, a partir do processo de empoderamento gerado, com as mulheres relatando uma redução dos casos de violência doméstica. Fora da dinâmica familiar, os dados cadastrados também têm servido como comprovação de sua atuação como agricultoras familiares, possibilitando às mulheres o acesso a direitos como à DAP (Declaração de Aptidão ao PRONAF), que dá acesso às políticas federais para a agricultura familiar, e à aposentadoria pública rural da agricultura familiar, sem contribuição à previdência social (ambas exigem comprovação da atividade para se qualificar).  

Beth está engajando ativamente mais atores em diversas regiões do país para implementar a metodologia e aproveitar esses dados para melhorar a vida das mulheres e a produção de alimentos, influenciando na criação de políticas públicas específicas. Uma estratégia de disseminação é por meio de redes nacionais e regionais de agricultura familiar, agroecologia e movimentos rurais, como a Articulação Nacional da Agricultura (ANA), que é formada por 23 redes estaduais e regionais. Ao formar as/os profissionais que vão implantar a metodologia, Beth segue o mesmo processo, onde as/os participantes vivenciam as atividades e aprendem sobre as desigualdades de gênero a que as mulheres estão submetidas, aspectos técnicos sobre o modo de produção das mulheres e direitos das mulheres. Embora esta continue a ser uma importante estratégia de expansão, os resultados e o reconhecimento também permitiram que Beth disseminasse a iniciativa por meio do FIDA (Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola), em 6 projetos envolvendo 909 mulheres agricultoras familiares de 7 estados do nordeste do Brasil, 112 municípios, com um total produzido por todas as agricultoras envolvidas, ao longo de 13 meses, de R$ 3.214.127,81 (de 2019 a 2020), que não teriam sido contabilizados sem a aplicação das Cadernetas Agroecológicas. 

Beth tem atuado pela inclusão da metodologia das Cadernetas Agroecológicas em políticas públicas municipais e estaduais de assistência técnica e extensão rural para mulheres na Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Sergipe e Acre; em ações de pesquisa e extensão do INCAPER – Instituto Estadual de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural do Espírito Santo; em 3 projetos de pesquisa-ação na UFV; no projeto Gengibre, uma pesquisa-ação executada através da parceria entre o Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD) da Universidade de Toulouse - França, a SOF (Sempre Viva Organização Feminista), o CTA/ZM e a UFV; e na Escola Política Continental de Agroecologia do MAELA (Movimento Agroecológico da América Latina e Caribe). Para garantir que a Caderneta Agroecológica continue sendo utilizada como uma metodologia para o empoderamento das mulheres, o CTA registrou os direitos autorais e disponibiliza a metodologia gratuitamente diante do compromisso de que as instituições que vão aplicá-las promovam os direitos das mulheres e protejam os dados cadastrados. Com o enriquecimento do banco de dados, que virá com a maior aplicação da metodologia através do Observatório das Cadernetas Agroecológicas que está sendo criado, Beth espera inserir as mulheres no sistema econômico rural garantindo um impacto ainda maior nas políticas públicas e nas mudanças sistêmicas no meio rural.

A pessoa

O envolvimento de Beth com questões feministas e agroecológicas está relacionado a um momento decisivo em sua infância. Carioca, filha de uma paraibana técnica de enfermagem e um carioca bancário, Beth teve que conviver com a separação dos pais nos primeiros anos de vida. O pai afastou ela e os irmãos do contato com a mãe por preconceitos sexistas e xenófobos: o pai temia que a ex-mulher levasse os filhos para os cuidados da avó agricultora, no interior da Paraíba. Beth começou a apoiar e trabalhar pelos direitos de mulheres simples e agricultoras ainda sem conhecer toda essa história.

Durante a graduação em Agronomia, ela entrou em contato com o movimento estudantil e com o GAE - Grupo de Agricultura Ecológica, o que fortaleceu ainda mais o desejo de Beth pela mudança social aliada ao desenvolvimento sustentável, objetivo que ela nunca abandonou. Tornou-se diretora do CEA - Centro Acadêmico de Agronomia e do DCE - Diretório Central dos Estudantes, e representou os estudantes no Conselho Universitário, no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão e no Colegiado do Departamento de Solos. Muitas vezes ela era a única mulher entre muitos homens.

Depois de se formar em Agronomia, passou a trabalhar na FASE e participou ativamente do Seminário Nacional de Gênero e Agricultura Familiar, organizado pela SOF (Sempreviva Organização Feminista). Esse período é marcado pelo início do debate sobre gênero e agricultura familiar no Brasil. Na virada do século, Beth iniciou sua trajetória no CTA/ZM, passou a militar na Marcha Mundial das Mulheres em 2002 e tornou-se coordenadora do GT Gênero e Agroecologia da Região Sudeste em 2003. No ano seguinte, Beth co-criou o Seminário de Gênero e Agroecologia, que deu origem à fundação do GT Mulheres da ANA (Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia), do qual é integrante da coordenação até hoje. Toda a sua trajetória é marcada pelo compromisso com as questões de gênero e agroecológicas, temas que também trabalhou em seu mestrado em Agroecologia na Espanha.

O aprendizado com as mulheres agricultoras e com o feminismo fez Beth reconhecer os preconceitos e discriminações vividos por sua mãe e foi em sua busca a reencontrando em 2005, promovendo o reencontro com seus irmãos e por fim fazendo a reconciliação com a parte materna da família. Beth conviveu com a mãe até o seu falecimento em 2011 e nesse período recebeu preciosos aprendizados sobre a sua história de exclusão e sobre a sua superação. Aprendizados que também compartilhou com as mulheres agricultoras, que como sua mãe, vivem também seus processos de exclusão, retroalimentando assim a dinâmica de construção coletiva do conhecimento entre as mulheres, através das vivências experimentadas por elas.

Com a expansão do uso das Cadernetas Agroecológicas, Beth tem aproveitado o doutorado em Recursos Naturais e Gestão Sustentável (na linha de pesquisa em Agroecologia, Soberania Alimentar e Bens Comuns), que está cursando atualmente, para sistematizar mais evidências sobre a importância da produção e do trabalho das mulheres agricultoras na geração de renda, na manutenção da sociobiodiversidade, na produção de alimentos e na promoção da soberania e segurança alimentar das famílias; além de articular estratégias para contribuições ainda mais amplas e fundamentadas para o enfrentamento às desigualdades a que estão submetidas as mulheres da agricultura familiar e na construção, através do feminismo e da agroecologia, de um mundo justo igualitário, saudável, em que os trabalhos e a economia sejam direcionados para a sustentabilidade da vida.